Numa época em que cientistas de renome como Richard Dawkins e Sam Harris se dedicam a ampliar o fosso entre ciência e religião, o brasileiro Marcelo Gleiser
assume a delicada tarefa de estender pontes entre os dois lados.
Graduado em física pela PUC do Rio e doutorado em física teórica pelo
King’s College, de Londres, esse carioca de 53 anos acredita que o
entendimento entre as partes é o caminho natural.
Radicado
nos Estados Unidos – desde 1991 é professor do Dartmouth College, uma
das mais renomadas universidades americanas – , onde o fundamentalismo
cristão desempenha um papel político de primeira grandeza, Gleiser sabe
que nem sempre é possível evitar choques. Ele se opõe com vigor às
tentativas de setores religiosos de definir a agenda científica. Discorda,
porém, daqueles que, do alto das cátedras e dos fundos públicos e
privados de financiamento à pesquisa, pretendem vingar Adão e expulsar o
Criador do Paraíso do conhecimento.
Quando
se discute a relação entre ciência e religião no universo acadêmico, o
polo religioso é sempre o mais frágil. Nos últimos 50 anos, porém, a
posição da ciência tem sido muito questionada. Como o senhor vê hoje a
posição da ciência diante da religião?
Não existe uma posição da ciência em relação à religião. Existem posições de cientistas em relação à religião, e essas posições são muito diferenciadas. Num extremo, você tem os novos ateístas, como Richard Dawkins, Daniel Dennett e outros, que acham que ser religioso é ser louco ou estar completamente iludido em relação ao real. Eles fazem um ataque bastante agressivo em relação à fé.
Não existe uma posição da ciência em relação à religião. Existem posições de cientistas em relação à religião, e essas posições são muito diferenciadas. Num extremo, você tem os novos ateístas, como Richard Dawkins, Daniel Dennett e outros, que acham que ser religioso é ser louco ou estar completamente iludido em relação ao real. Eles fazem um ataque bastante agressivo em relação à fé.
No
outro extremo, você tem cientistas que são perfeitamente religiosos e
veem em seu esforço científico uma aproximação com Deus, se forem
judeus, cristãos ou muçulmanos, ou com uma espiritualidade que pode ser
budista, hinduísta etc. Para eles, quanto mais aprendem sobre o universo e a natureza, mais se aproximam de Deus.
Entre
essas duas posições extremas, você tem uma porção de outras posições.
No meu caso, vejo essa cruzada antirreligiosa que certos cientistas
estão fazendo como uma completa perda de tempo, que não vai levar a nada
e ignora o papel essencial que a religião tem na sociedade e em nossa cultura. As
pessoas sabem muito pouco sobre história, filosofia e menos ainda sobre
o espírito humano para entender o quanto a fé é importante na vida das
pessoas. É muita
presunção de certos cientistas achar que a ciência pode, dentro da
posição dela, acabar com o papel da religião na vida das pessoas.
Isso é um absurdo, por vários motivos. Entre eles, e é algo que vai ser
assunto do meu próximo livro e vou abordar na minha conferência, o fato
de que a ciência também tem limitações na sua concepção e no seu
funcionamento.
Quais seriam essas limitações?
Certos cientistas que escrevem para o público, como Stephen Hawking, Bryan Greene e outros, ficam tão empolgados com certas ideias científicas que esquecem de onde elas vêm e quais são seus limites filosóficos e metafísicos. Existe muita distorção sobre o que a ciência pode fazer e já fez quanto à explicação de questões fundamentais, também tocadas pela religião, como a origem do universo, da vida e da mente. Dizer que a ciência entende a origem do universo é uma grande bobagem. A ciência tem teorias que explicam uma porção de coisas maravilhosas sobre o universo, e todos devemos ter muito orgulho delas. Mas a gente ainda não entende a origem do universo, e eu, particularmente, nem sei se a gente conseguiria, dentro do processo científico, entender.
Os EUA, onde o senhor está radicado, assistem à tentativa de interferência de setores religiosos na pesquisa e no ensino de matérias científicas. Como vê esse fenômeno?
Aqui, essa questão, infelizmente, é muito politizada, e não deveria ser. Principalmente durante o governo George W. Bush, quando a direita religiosa foi ao poder, houve várias medidas que interferiam na liberdade de pesquisa científica. Isso causou indignação na maior parte da comunidade acadêmica, que não aceita interferência religiosa na pesquisa científica. Quando isso acontece, parece que estamos voltando ao início do século XVII.Por outro lado, é óbvio que a pesquisa científica sempre tem um aspecto moral que não podemos deixar de lado. Temos de pensar sobre as implicações sociais, culturais e morais da pesquisa científica, e isso é verdade tanto no mundo da engenharia nuclear quanto no da engenharia genética. A questão da clonagem de humanos, que é extremamente complexa, desperta contrariedade na maioria absoluta da comunidade científica. Não existe nenhum uso médico disso. Se você quer ter filhos, há outros procedimentos e você não vai querer ter um filho que tenha o código genético igual ao seu.
Quais seriam essas limitações?
Certos cientistas que escrevem para o público, como Stephen Hawking, Bryan Greene e outros, ficam tão empolgados com certas ideias científicas que esquecem de onde elas vêm e quais são seus limites filosóficos e metafísicos. Existe muita distorção sobre o que a ciência pode fazer e já fez quanto à explicação de questões fundamentais, também tocadas pela religião, como a origem do universo, da vida e da mente. Dizer que a ciência entende a origem do universo é uma grande bobagem. A ciência tem teorias que explicam uma porção de coisas maravilhosas sobre o universo, e todos devemos ter muito orgulho delas. Mas a gente ainda não entende a origem do universo, e eu, particularmente, nem sei se a gente conseguiria, dentro do processo científico, entender.
Os EUA, onde o senhor está radicado, assistem à tentativa de interferência de setores religiosos na pesquisa e no ensino de matérias científicas. Como vê esse fenômeno?
Aqui, essa questão, infelizmente, é muito politizada, e não deveria ser. Principalmente durante o governo George W. Bush, quando a direita religiosa foi ao poder, houve várias medidas que interferiam na liberdade de pesquisa científica. Isso causou indignação na maior parte da comunidade acadêmica, que não aceita interferência religiosa na pesquisa científica. Quando isso acontece, parece que estamos voltando ao início do século XVII.Por outro lado, é óbvio que a pesquisa científica sempre tem um aspecto moral que não podemos deixar de lado. Temos de pensar sobre as implicações sociais, culturais e morais da pesquisa científica, e isso é verdade tanto no mundo da engenharia nuclear quanto no da engenharia genética. A questão da clonagem de humanos, que é extremamente complexa, desperta contrariedade na maioria absoluta da comunidade científica. Não existe nenhum uso médico disso. Se você quer ter filhos, há outros procedimentos e você não vai querer ter um filho que tenha o código genético igual ao seu.
Como deveria ser fundamentada a convivência entre fé e ciência?
As
fronteiras têm de ser respeitadas. O problema se inicia quando a
religião começa a se meter no processo científico. Quando conselhos
educacionais resolvem que não se pode mais ensinar a teoria da evolução
de Darwin porque
não é religiosa ou quando o Estado, controlado por interesses
religiosos, decide interferir nos fundos de pesquisa científica básica
porque afetam algum princípio religioso. Quando a religião interfere em
algum aspecto do conhecimento, ela está andando para trás e não fazendo o
papel importante que pode fazer na vida das pessoas. Por outro lado,
quando a ciência faz pronunciamentos grandiosos do tipo “Deus não é mais
necessário porque já entendemos tudo sobre o universo”, está abusando
do que realmente sabe para fazer uma propaganda indevida. Essa
coexistência tem de ser de respeito mútuo.
Os cientistas têm de entender que existem 4 bilhões de pessoas no mundo
que acreditam em alguma forma de Deus. A ciência não tem como papel
tirar Deus de ninguém, e sim explicar como o mundo funciona e talvez
minorar um pouco o sofrimento humano. Nesse quadro, as coisas poderiam funcionar bem. Isso prescinde uma separação da Igreja e do Estado, obviamente. A
minha cruzada é mostrar que é uma perda de tempo os cientistas acharem
que vão convencer as pessoas de que elas não precisam de religião.
A religião atua em esferas além da ciência. Se morre alguém querido
para você, você vai buscar consolo na sua família, no seu padre, no seu
rabino ou seja lá em quem for. A religião oferece um sentido de
comunidade, de pertencer, que é um grande antídoto contra a solidão
humana. Nesse sentido, ela é extremamente importante
Como o senhor vê a situação da pesquisa científica no mundo contemporâneo?
A
pesquisa científica é um dos maiores motivos de orgulho que a
humanidade tem. Isso sempre foi verdade, desde que a ciência moderna
começou, há 400 anos, e continua sendo. O discurso pós-moderno, da
subjetividade, de que não existem verdades, tem de ser tomado com muito
cuidado. É claro que a ciência
está sempre avançando. Conceitos científicos são renovados e
reformados, e é justamente essa a beleza da ciência, de estar sempre se
reinventando a partir de uma compreensão cada vez maior do mundo.
O que seria o lado mau da ciência e o que seria possível fazer para, se não anulá-lo, pelo menos controlá-lo?
O lado mau não vem da ciência, mas do caráter humano. Quando se fala do bem ou mal da ciência ou de a ciência ter feito mal à humanidade, é preciso lembrar que a ciência não fez bem nem mal. A ciência é um corpo de conhecimento que descreve como funciona a natureza. A escolha moral de como vamos usar esse conhecimento vem dos homens. São as pessoas que fazem escolhas e podem usar a radiação nuclear tanto para curar um câncer quanto para construir bombas. Esse lado de sombra ou luz da ciência é do ser humano, que também usa a religião para o bem ou para o mal. Essa escolha tem a ver mais com a natureza do ser humano do que com a da ciência. O que a comunidade científica pode fazer é tentar trazer esse discurso das implicações éticas e morais da ciência para a sociedade. E acho que isso acontece. Existe uma mobilização das comunidades científicas no Brasil e no mundo para que sejam debatidos os usos e abusos da ciência. E, de uma certa forma, isso está acontecendo. As guerras químicas e biológicas estão proibidas. O controle do armamento nuclear envolve uma porção de cientistas e tem algum sucesso. Pelo menos não temos nenhuma guerra nuclear desde 1945
O lado mau não vem da ciência, mas do caráter humano. Quando se fala do bem ou mal da ciência ou de a ciência ter feito mal à humanidade, é preciso lembrar que a ciência não fez bem nem mal. A ciência é um corpo de conhecimento que descreve como funciona a natureza. A escolha moral de como vamos usar esse conhecimento vem dos homens. São as pessoas que fazem escolhas e podem usar a radiação nuclear tanto para curar um câncer quanto para construir bombas. Esse lado de sombra ou luz da ciência é do ser humano, que também usa a religião para o bem ou para o mal. Essa escolha tem a ver mais com a natureza do ser humano do que com a da ciência. O que a comunidade científica pode fazer é tentar trazer esse discurso das implicações éticas e morais da ciência para a sociedade. E acho que isso acontece. Existe uma mobilização das comunidades científicas no Brasil e no mundo para que sejam debatidos os usos e abusos da ciência. E, de uma certa forma, isso está acontecendo. As guerras químicas e biológicas estão proibidas. O controle do armamento nuclear envolve uma porção de cientistas e tem algum sucesso. Pelo menos não temos nenhuma guerra nuclear desde 1945
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