Ocidente secularizado? Culpa de Lutero
A
Reforma protestante, embora fosse uma reforma religiosa, causou a
secularização do mundo ocidental: isso com base na decisão dos
reformadores religiosos do século XVI de se livrarem de uma cultura
filosófica e teológica (a aristotélica e tomista), em nome de um sistema
teológico baseado na Bíblia, que abriu as portas a um
extremo pluralismo teológico e confessional que, ao longo do tempo,
obrigou o Ocidente a se tornar indiferente com relação à questão da
verdade.
A opinião é de Massimo
Faggioli, doutor em história da religião e professor de história do
cristianismo da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos
EUA.
O catolicismo contemporâneo se
debate, especialmente no ano do 50º aniversário do Concílio Vaticano II,
com a questão da relação com a modernidade: para alguns era a hora de
que ocorresse o encontro entre cristianismo e mundo moderno; para
outros, a decisão do cristianismo e da Igreja Católica em particular de
se abrirem à modernidade foi a decisão mais grave e desastrosa dos
últimos cinco séculos.
Uma forma simplista de abordar a
questão é dividir os primeiros dos segundos de acordo com as categorias
políticas clássicas de “progressistas” e “conservadores”. Essa divisão
explica algo daquela divisão entre culturas religiosas, mas não é
exaustiva, especialmente para a cultura religiosa (cristã e católica)
não europeia e anglo-saxônica, e norte-americana em particular.
Um livro essencial para compreender essa questão – que é a questão do cristianismo contemporâneo – é o de Brad Gregory, The Unintended Reformation: How a Religious Revolution Secularized Society
(Harvard University Press, 2012, 592 páginas). O livro de Gregory,
professor de história da University of Notre Dame, nos Estados Unidos,
aborda a questão em livro de peso e referências bibliográficas que não é
um exagero definir como intimidatórios.
Segundo a tese do livro, a
Reforma protestante, embora fosse uma reforma religiosa, causou a
secularização do mundo ocidental: isso com base na decisão dos
reformadores religiosos do século XVI de se livrarem de uma cultura
filosófica e teológica (a aristotélica e tomista), em nome de um sistema
teológico baseado na Bíblia, que abriu as portas a um extremo
pluralismo teológico e confessional que, ao longo do tempo, obrigou o Ocidente a se tornar indiferente com relação à questão da verdade.
Na Europa, especialmente, essa
situação forçou o Estado moderno a se tornar garantia da liberdade
religiosa, mas por parte de um poder declarada e crescentemente
“secular” não no sentido de ateu ou agnóstico, mas sim no sentido de um
poder “secular” que se encarregou de proteger e canalizar as expressões
institucionais de busca da verdade religiosa.
O primeiro capítulo se intitula
“Excluir Deus”, partindo daquela cultura europeia que, no início do
século XX (Kafka, Sartre, Beckett), excluiu Deus do horizonte de sentido
do ser humano moderno com base no que, no segundo capítulo, Gregory
chama de o processo de “relativização das
doutrinas”, causada pela rejeição da autoridade da Igreja e dos seus
ensinamentos, desde o início da Reforma protestante.
Essa relativização da verdade
levou, segundo Gregory, ao direito à liberdade religiosa e, em seguida,
conduziu o Estado moderno ao “controle das Igrejas” (capítulo três):
isso levou a um processo de “subjetivização da moralidade”, em um mundo em que se tornou difícil, senão
impossível, fazer afirmações sobre a moral que não sejam percebidas
como puramente individuais e, portanto, relativas e atacáveis.
Nesse tipo de mundo, segundo
Gregory, ideias como “virtude”, “significado”, “amor ao próximo”,
“cuidado dos pobres” tornaram-se ideias impraticáveis – senão na
prática, certamente na teoria. Daí à criação de um mundo concentrado nas
práticas do capitalismo e do consumismo, dominado pelas forças do
mercado, a distância é curta e leva a uma
“secularização do conhecimento”, que excluiu a teologia e as ciências do
divino não só das universidades, mas também do cânone das disciplinas
úteis, sérias e intelectualmente respeitáveis no Ocidente
industrializado.
O livro de Gregory, que leciona
na universidade católica mais importante da América do Norte, enumera
substancialmente uma série de fracassos: o fracasso histórico da Reforma
protestante, o fracasso da Europa moderna dos Estados confessionais e a
crise da ideia de liberdade religiosa e de direitos humanos como utopia
difícil de substanciar sem uma ideia de verdade enunciada sobre bases metafísicas.
O livro aponta o dedo contra as
fragilidades sociais e políticas da modernidade ocidental, evidenciando
as suas raízes teológicas.
O livro de Brad Gregory é um
livro que filosoficamente se baseia em Agostinho de Hipona e Tomás de
Aquino, os dois pilares da teologia católica nos Estados Unidos. The Unintended Reformation
também se propõe como um útil contraponto à visão da modernidade
oferecida há apenas alguns anos por Charles Taylor no seu monumental Uma
era secular (Editora Unisinos, 2010), e como solução definitiva para
aquela subespécie de cultura neoateia (Hitchens, Dawkins, Harris, com o
seguidor italiano Odifreddi) que, nos últimos anos, lucrou vendendo a ideia de que a ciência é para os inteligentes, e a fé, para os crédulos.
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