É
possível fazer uma leitura dos acontecimentos históricos que percorrem
desde o surgimento do Luteranismo até o relativismo atual através da
chave de interpretação da quádrupla negação. Sendo que uma negação
prepara o sucessivo “não”.
Vejamos de modo concreto para entender a questão.
DEUS SIM, IGREJA NÃO
É a negação surgida e instaurada por Lutero. Permite uma visão mais subjetivista da fé,
onde realça o caráter pessoal da salvação em detrimento do caráter
institucional. É possível seguir a Deus, sem seguir uma instituição em
concreto. Nega-se o caráter necessário da Igreja para a salvação,
para isto, será necessário defender um conjunto de conceitos
epistemológicos que será à base do pensamento da filosofia moderna.
DEUS SIM, CRISTO NÃO
Esta segunda grande negação é própria do século da ilustração, onde se busca uma fé fundada apenas na razão.
Aceita-se a Deus, mas apenas como um grande relojoeiro que fez sua obra
prima (o cosmos), a dotou das forças necessárias para se autogerir e
foi embora. A providência é jogada no lixo, surge o DEISMO. Um
Deus sem culto e despersonalizado. O homem é senhor total e absoluto de
seu próprio destino. Nega-se a transcendência. A realidade não é
apreendida objetivamente pelo ser humano, mas construída
intelectualmente através das percepções sensitivas que são próprias a
toda raça humana.
É
no contexto desta segunda negação que surge a Revolução Francesa,
retirando dos templos católicos a presença dos santos e de Cristo
eucaristia, e erigindo altares à Deusa Razão. Uma “contraditio
terminis”, pois “mitologizam” a fé católica, retiram dos evangelhos tudo
que seja milagroso e sobrenatural e ao mesmo tempo criam culto e templo
para a “Deusa Razão”.
É
um racionalismo fundando na irracionalidade do caos e da violência.
Destinada intelectualmente ao fracasso, a revolução tinha seus dias
contados, apesar da propaganda massiva da revolução perpetrada por
Jacques-Louis David criando obras como o Juramento de Horácio (cena
dramática que convida a população a pegar em armas) e perpetuando o
mártir da revolução no quadro “A morte de Marat”.
A revolução francesa nasce de exigências legítimas de uma população que sofria pela fome, crise nas colheitas e impostos sufocantes. No entanto, conduzida não pela razão que tanto defendia, mas pelo terror das guilhotinas. O
lema “liberdade, igualdade e fraternidade”, pese seu caráter evangélico
e de se propor como novo evangelho, era escrito pelo sangue de muitos
homens e mulheres que não se alinhavam. Vemos
a expropriação das propriedades do clero, a assassinato de sacerdotes,
religiosos e religiosas. A Fé católica é vista como fundamento do Ancient Regime e como tal deve ser varrida do mapa, como principal inimiga da revolução e de seus ideais.
Surge,
então, como resposta a esta barbárie um novo absolutismo que se espalha
por toda a Europa. Mas, o mundo já não era mais monárquico, a semente
do pensamento revolucionário já tinha sido plantada. E mais tarde
crescerá com mais furor através da revolução marxista que veremos a
seguir na terceira negação.
DEUS NÃO, O HOMEM SIM
É
a última negação presente no séc. XIX. Deus já não é necessário para
garantir a ordem do mundo. A única realidade é a material e a este
senhor devemos prestar contas. Seu fundamento é a filosofia Hegeliana.
Onde o espirito absoluto é traduzido à matéria. E os indivíduos são
apenas um momento, uma ocasião para o desenvolvimento da matéria, do
mundo perfeito sem classes e de total igualdade.
Na filosofia marxista, não há pessoas, existe apenas o estado, que se desenvolve através da dialética de lutas de classes.
O novo homem e nova humanidade marxista é a síntese final do processo
dialético, onde a tese são os sistemas econômicos burgueses e a antítese
é a classe operária explorada. O marxismo acelera o confronto entre
ambas que ocorrerá de modo necessário.
A
visão de pessoa humana como um momento do processo dialético
materialista é o que justifica a barbárie de mais de 100 milhões de
pessoas exterminadas por Stalin. Os comunistas alegam que isto
ocorreu porque Stalin desvirtuou a revolução. Em realidade, ele se
apresenta como aquele que leva até as últimas consequências os
pressupostos filosóficos da revolução.
A negação de Deus só é possível, em última instância, através da negação do ser humano, o que nos conduz a uma quarta negação.
O HOMEM NÃO
A degradação da razão humana conduz a negação da impossibilidade da existência de qualquer verdade absoluta. A filosofia hermenêutica presente na obra “Verdade e Método” de Gadamer é um exemplo.
O homem constrói a verdade segundo seu grupo social e cultura, e este
grupo com “suas verdades” é que constrói o homem e a verdade das coisas. Deste modo, a verdade é sempre mutável e não um termo “ad quo”, não há uma finalidade para vida humana, mas apenas uma construção de algo caótico a um nada último.
Esta visão epistemológica se apresenta como fundamento do relativismo moral e do indiferentismo religioso. Quando tudo é verdade, não existe verdade.
E quando nada é objetivamente verdadeiro, todas as coisas são colocadas
no mesmo plano, perdendo seu valor. Priva a racionalidade humana do
principio de não contradição, conduzindo a humanidade a ações bárbaras.
Sobre
a bandeira da tolerância, o relativismo implanta uma verdadeira
ditadura da força e do poder. Pois quando não há uma verdade como
critério e medida de nossas ações, se implanta a verdade subjetiva dos
mais fortes. Por isso, as politicas e medidas sociais são
implantadas não em vistas a um bem comum, ou um critério de bondade e
verdade, mas segundo pressões sociais, econômicas ou interesses
privados.
Assim
vemos a aprovação das uniões homoafetivas, a aprovação do aborto em
geral, e do bebê anencéfalo em especifico. O homem volta-se contra o
mesmo homem, pois ferido em sua racionalidade, é incapaz de perceber as
consequências de seus atos que vão contra a sua própria humanidade.
CONCLUSÃO: UNIDADE SUBSTANCIAL DO SER HUMANO
Existe
uma profunda unidade entre as questões religiosas, econômicas,
filosóficas, sociais e politicas. Não são elementos separados, pois quem
as elabora, vive e pratica é o homem. O ser humano é o centro das
questões.
Por isso, um
subjetivismo religioso exacerbado de Lutero nos conduz a uma filosofia
moderna que coloca o homem como criador da realidade e a Deus apenas
como garantidor de uma ordem. Este racionalismo moderno exige a
existência de um Deus impessoal e ordenador, surgindo o Deísmo próprio
do iluminismo, com sua expressão mais “gloriosa e nefasta” instaurado no
culto à “Deusa Razão” no período da Revolução Francesa. Revolução esta guiada por um desejo de fazer o bem, mas com princípios que levariam ao terror. Neste
processo de degradação da razão humana o surgimento de regimes ateus, o
indiferentismo e o relativismo presentes nos dias atuais são
consequências naturais.
Um
processo de negação da objetividade das coisas que “corrói” a razão
humana, pois negar a capacidade de transcendência humana, é negar a
mesma humanidade.
*
Daniel Marques é formado em Humanidades Clássicas em Salamanca,
Espanha, obteve a graduação e o Mestrado em Filosofia em Roma, e
atualmente cursa o 2o. ano de teologia na arquidiocese do Rio de
Janeiro.
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